Você conhece a definição acima? Pois bem, pode esquecê-la. Ao menos, no início das histórias. O relato mais famoso sobre as sereias vem da “Odisseia”, de Homero, poema épico escrito por volta de três mil anos atrás. A história conta a saga de Ulisses (Odisseus, em grego), rei de Ítaca (lendária ilha do Mediterrâneo), após a vitória dos gregos, na famosa Guerra de Troia, em sua volta para casa, em uma viagem que durou dez anos.
O motivo desta demora foi uma maldição de Poseidon, deus dos oceanos. Em uma das primeiras paradas no retorno, os marinheiros de Ulisses desembarcaram na ilha habitada pelo ciclope Polifemo (filho do deus). Irritado com a invasão, o ciclope (um gigante com um único olho) prende os nautas em uma caverna, devorando dois a cada dia.
Ulisses arquiteta um plano: logo pela manhã, os sobreviventes se agarraram aos pelos das ovelhas (Polifemo era pastor) e conseguiram escapar. O herói ofereceu vinho para o ciclope, que, embriagado, caiu no sono. Foi a senha para que os homens o atacassem e furassem seu olho. Agonizando, Polifemo rogou vingança ao pai, que tratou de encher o caminho dos marinheiros de armadilhas.
Voltando às sereias
No capítulo XII da saga, consultando os mapas náuticos, Ulisses percebeu que a frota estava se aproximando da ilha de Capri (atual Itália), habitada por seres mágicos: as sereias: aves de penas negras de beleza única e canto irresistível. Eram, na verdade, mulheres que ofenderam Afrodite (deusa do amor), recusando-se ao amor e ao prazer. A vingança da deusa foi terrível.
Capri tem o litoral bastante rochoso e, para os conhecimentos de navegação da época, qualquer distração naquelas rotas significava naufrágio certo. Ulisses criou outro estratagema: tapou os ouvidos dos marinheiros com cera, para que não ouvissem o canto, e pediu que o acorrentassem fortemente ao mastro do navio.
Antes da passagem pelo canal, o herói advertiu para que não o soltasse por qualquer pretexto. A orientação foi valiosa: durante o trajeto, Ulisses, seduzido pelo canto das sereias, gritava desesperadamente para que o livrassem das correntes, mas, seja por obediência à ordem, seja por não conseguirem ouvir nada com as orelhas tapadas, os marinheiros completaram a rota sem nenhuma perda.
Outra obra grega bastante conhecida é o relato dos Argonautas, heróis e semideuses (o poderoso Hércules, inclusive) que se aventuraram na nau Argo em direção à Cólquida (atual Geórgia) em busca do “velocino de ouro” – pele de carneiro que tinha o dom de curar todas as doenças humanas.
Entre os nautas, estava Orfeu, encarregado de cadenciar o ritmo das remadas, graças ao se dom da música (só por curiosidade, o mito de Orfeu deu origem a “Orfeu da Conceição”, peça teatral de Vinícius de Morais, adaptada para o cinema por Marcel Camus, em um filme ítalo-franco-brasileiro, com músicas de Luís Bonfá e Tom Jobim, que recebeu o único Oscar de melhor filme estrangeiro, em 1960).
Pois bem. No trajeto, que se estendeu por boa parte do Mediterrâneo, estava o território das sereias. Para escapar ao perigo, Orfeu – que é “o poeta mais talentoso que já viveu” – usou sua lira para sobrepujar o belo e perigoso canto. Nenhuma das embarcações dos argonautas sofreu danos: as sereias simplesmente ficaram mudas, ouvindo a música tocada em uma lira presenteada por Apolo, deus do Sol, das profecias e das artes.
Sereias: Metade peixe, metade mulher
A imagem mais conhecida das sereias foi criada décadas ou séculos depois. Na verdade, poucos povos da época conheciam a arte da navegação. Os gregos, na maior parte de suas conquistas, apenas costeavam a península Helênica e parte da atual costa turca.
Quando passaram a se aventurar por águas mais profundas e revoltas, gregos, fenícios e romanos (posteriormente) conheceram animais desconhecidos, da ordem dos sirênios, que nadavam com elegância e, de tempos e tempos, refugiavam-se em praias rochosas, como se precisassem descansar por alguns instantes. Os sirênios vivem tanto nos mares, como nos rios, quase sempre junto à foz.
Dificilmente um homem contemporâneo conseguiria identificar traços femininos nestes imensos mamíferos, que atingem uma tonelada (por aqui, a espécie mais conhecida é o peixe-boi, que despertou a curiosidade econômica dos portugueses logo que eles aportaram em terras brasileiras) e são bastante desajeitados quando estão em águas rasas. Apenas o canto destes animais pode ter alguma relação com as sereias.
Os gregos antigos, no entanto, tinham a imaginação fértil. Como os sirênios (o termo é derivado, como se pode notar, de “sereia”) estavam sempre junto às costas, locais de muitos naufrágios, foi apenas um passo para identificar, nos simpáticos cantores, um perigo mortal.
Para ajudar, são animais muito curiosos e não se acanham em “investigar” restos de navios afundados. Para os gregos, este era um sinal bastante claro de que as sereias eram inimigas poderosas: elas entravam nos restos das embarcações em busca de ouro e joias: como toda mulher, elas também gostam muito de se enfeitar.
As sereias com forma de peixe, de acordo com a mitologia, eram filhas de Aqueloo, um deus-rio filho do Oceano (uma das deidades primordiais), e de Melpômene, a musa da tragédia. No início, eram apenas três, mas a criatividade acabou por espalhá-las por todo o Atlântico – e por muitas outras águas, na América e na África.
A visão afro-brasileira
Na religião iorubá, que contribuiu com vários elementos para o sincretismo brasileiro, Iemanjá é a deusa primordial, rainha das águas salgadas, filha de Obatalá e Oduduá, que fez nascer de seus seios volumosos dois grandes rios: o primeiro se tornou a lagoa; o segundo, o oceano. Posteriormente, todos os deuses foram gerados por Iemanjá.
Na magia do candomblé, esta deusa primordial é o princípio e o fim de todas as coisas. Aparentemente, a representação da divindade com aspecto de sereia foi criada no Brasil, onde ela recebeu os nomes de Mãe d’Água, Dona Janaína e Rainha do Mar. A imagem é provavelmente uma junção entre mitos indígenas e africanos: os povos nativos do Brasil cultuavam Iara, sereia das águas doces, que atraía os homens para o fundo dos rios, onde terminavam afogados de paixão.
Sendo a grande mãe da humanidade, esta sereia é também a grande destruidora da vida. Os rios – assim como os mares – trazem alimento, água e lazer, mas, quando escapam de seus leitos, são fatores de morte. Portanto, devem ser reverenciados.
As sereias existem?
De acordo com alguns grupos, as sereias existem e continuam passeando pelos mares e rios. Não são malignas, como a mitologia grega as descreveu, mas podem causar danos consideráveis quando seus territórios são invadidos.
Elas seriam, de acordo com uma corrente, a continuação evolutiva de um “macaco aquático”, ancestral humano que se adaptou a viver nas águas pela necessidade de adquirir alimento ou para se preservar contra predadores. Seja qual for a razão, estes seres estariam na gênese de uma espécie anfíbia; outros hominídeos, no entanto, teriam se mantido em terra firme por todo o seu caminho evolutivo.
As provas apresentadas por estes cientistas são as seguintes: o Homo sapiens é o único primata que não tem o corpo totalmente coberto por pelos; podemos controlar a respiração voluntariamente, da mesma forma que os mamíferos aquáticos; mantemos uma camada de gordura que ajuda a preservar o calor do corpo durante todo o ano; lágrimas e suor excessivo parecem indicar que descendemos de mamíferos não terrestres; nossa linguagem se assemelha à utilizada por baleias e golfinhos; por último, nossa facilidade para nadar fortalece a hipótese de que viemos do mar.
Existem muitas evidências que depõem contra estas teorias: por exemplo, lontras e ariranhas são mamíferos aquáticos que não precisaram perder os pelos para continuar com seus passeios pelos rios. Além disto, não há qualquer evidência de registros fosseis dos prováveis ancestrais aquáticos do homem, quanto mais de seres contemporâneos.
Mas, afinal, as sereias existem? Ao menos na ficção e em alguns aquários (nos quais nadadoras mergulham em tanques para divertir as crianças), sim. A resposta definitiva, porém, fica por conta de cada leitor.