Ser feliz ou ter razão?

O poeta maranhense Ferreira Gullar sentenciou: “Não quero saber do sofrimento, eu quero é felicidade. Não gosto de fazer lamúrias. Uma vez, discuti feio sobre determinada situação. Fiquei sozinho em casa, cheio de razão e triste pra cacete. Então, para que querer ter sempre razão? Não quero ter razão, quero é ser feliz!”.

ser-feliz-ou-ter-razao

No entanto, nós, seres humanos, temos a tendência de estar sempre buscando a razão: nos relacionamentos amorosos, familiares, profissionais, etc. Mas a razão de um pode não ser a do outro e isto termina em um sem-fim de brigas, discussões, confusões, rupturas. A situação fica ainda pior quando resta o ressentimento, escondido no fundo da alma. Armamo-nos com nosso amor-próprio ferido e dizemos para nós mesmos: “eu tenho razão”. E daí?

Convivendo

Uma relação pressupõe a existência de sentimentos, objetivos comuns, a descoberta de que, ao pesar na balança, as qualidades do outro – parente, namorado, colega – superam as suas deficiências. Aqui está outro ponto importante: as deficiências são do outro e só ele pode decidir quando será o momento de superá-las. Talvez nunca; alguns defeitos são como o bicho-de-pé: incomodam e atrapalham, mas provocam uma coceirinha muito gostosa.

Somos seres gregários desde sempre. Dependemos dos outros, que, por sua vez, dependem de nós. Então, qual o motivo de apenas evidenciar as falhas? Quais motivos determinaram que deixássemos de enxergar as qualidades que nos aproximaram? “Você bebe demais”, “você fuma demais”, “você é desorganizado”, “você é muito certinho”.

Assim começa um duelo verbal que, em última análise, é pura perda de tempo. Ninguém vai mudar de personalidade por causas destas muitas razões. Certamente, fumar e beber são vícios bastante nocivos. Da mesma forma, ser muito organizado ou espalhar roupas e objetos por toda a casa são atitudes que podem irritar as pessoas em volta.

Mas ninguém ganha no grito: pode-se ensinar pelo exemplo, pelo diálogo. Quando fazemos certas concessões – em qualquer tipo de relacionamento –, estamos sinalizando para que o parceiro também observe as nossas necessidades. Desta maneira, as razões do casal, da família ou de um departamento de certa empresa se aproximam de pontos comuns. Neste caso, todos podem ser felizes e todos podem ter razão ao mesmo tempo.

Narcisismo

Algumas pessoas, no entanto, esforçam-se ao máximo para fazer prevalecer seus pontos de vista. No entanto, elas passam a maior parte do tempo “olhando a paisagem”, ou seja, vendo os outros, para criticar seu trabalho, sua roupa, sua forma de agir. É como se olhar para os pequenos pecados do dia a dia comprovasse que elas são melhores, estão muito acima da média da humanidade.

Estas pessoas quase sempre são polos geradores de tristeza. Atraem alguns parceiros – porque são inteligentes, bonitos, ou exibam qualquer outra qualidade mais evidente – mas as atitudes cotidianas provocam dor e afastamento. Isoladas, elas se apoiam na sua razão e passam longos períodos sem conhecer a alegria de um carinho, um sorriso, um cafuné.

Situações comuns

Certos indivíduos podem passar o dia tranquilamente, colaborando com os colegas, divertindo-se no happy hour, namorando no fim da noite. Algumas situações comuns, porém, parecem disparar a “síndrome do eu tenho razão”.

Dietas alimentares são bons momentos para cultivar o mau humor e a irritação, especialmente aquelas fórmulas miraculosas, como comer apenas alface durante a primeira semana. Apesar a título de explicação, esse tipo de dieta não funciona, ou, na melhor das hipóteses, provoca o chamado efeito sanfona. Sabe do que mais? Esqueça a receita da moda, procure um endocrinologista, emagreça e seja feliz, lembrando que todos nós temos direito a uma refeição à base de porcarias uma vez por semana.

Ao dirigir, alguns de nossos piores demônios são liberados. Estamos em uma via congestionada, um motociclista passa e altera a posição do retrovisor. O sangue sobre à cabeça, tentamos perseguir o agressor, buscamos ajuda policial. Mas, pensando bem, o prejuízo foi tão grande assim? Podemos colocar a nós mesmos e aos outros motoristas em perigo para encontrar o motoqueiro? O melhor a fazer é ajustar o espelho, ligar o rádio e seguir para casa, onde a felicidade nos espera.

As traições são ótimas ocasiões para nos armarmos de razão e cobrar explicações do(a) parceiro(a) pulador de cerca. Será que vai adiantar. É preciso avaliar se o namoro é importante, se está fazendo bem, a ponto de superar a pequena (ou grande). Se o resultado da análise for positivo, sempre se pode dar uma segunda chance. Do contrário, a fila anda.

No trabalho, por exemplo, os “puxadores de tapete” estão sempre procurando vítimas, seja para conquistar o cargo, seja apenas para humilhar o colega. Um empregado merece toda a confiança, é bem avaliado por colegas e superiores, mas certo dia cai no “laço” do inconveniente.

O que ele deve fazer? Alardear aos quatro cantos que foi vítima e é o dono da razão? Talvez o melhor a fazer seja ter uma breve conversa com o chefe – ou apenas enviar um e-mail – lamentando o ocorrido. As pessoas são dotadas de discernimento suficiente para entender o que aconteceu e a rodinha “do contra” vai ficar isolada.

Um pouco mais de poesia, para ajudar a refletir: “Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise. Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e tornar-se um autor da própria história. É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar um oásis no recôndito da sua alma. É agradecer a Deus cada manhã pelo milagre da vida”. Os versos são de Fernando Pessoa.