Na verdade, as pessoas não falam sozinhas: elas falam para si próprias. É uma atitude comum desde a infância: é comum ver crianças desenvolvendo uma tarefa – especialmente se for complexa – e dizer em voz alta as fases necessárias para completar a atividade: “primeiro cortar o papel, depois dobrar, aí pintar de um lado, de outro, e está pronto o telhado da casinha”.
Entre as crianças, também é comum conversar com um amiguinho imaginário (ou mesmo real, que não está presente no momento). A atividade auxilia a ampliar o vocabulário e, nas brincadeiras e jogos, trabalha diversas competências: orientação no tempo e no espaço, lateralidade, coordenação motora e outras habilidades motoras necessárias inclusive para a alfabetização. Vale o mesmo para conversas com bonecos e bichos de pelúcia.
É como se houvesse um adulto ao lado para orientar. Isto ajuda a desenvolver o senso de organização, que vai ser muito útil por toda a vida. E, uma vez que todos nós desenvolvemos esquemas próprios de organização – isto faz parte do processo de aprendizado – talvez falar sozinho seja um sinal de melhor aproveitamento cognitivo.
É útil para adultos também?
Falar sozinho ajuda até a encontrar objetos perdidos. A memória se organiza com frases aparentemente desconexas (o restante do raciocínio não acontece em voz alta). “Ontem eu cheguei, pendurei a chave do carro, coloquei a carteira na estante… Está no balcão da cozinha! Eu deixei a correspondência sobre o balcão da cozinha”. As reticências indicam o trabalho da mente refazendo todas as etapas entre a chegada à casa e a deposição das cartas na cozinha, mesmo que de forma inconsciente.
Este é um dos principais motivos para certas simpatias, como pedir auxílio a São Longuinho quando se precisa encontrar algo com urgência (teria sido um centurião romano curado em plena crucificação de Jesus). Ao proferir: “São Longuinho, me ajude a encontrar o celular e eu dou três pulinhos”, a pessoa distraída está com o pensamento fixo no celular, as últimas coisas feitas com ele por perto e também algumas ações ocorridas posteriormente.
Estudos das universidades de Wisconsin-Madison e da Pensilvânia (ambas nos EUA) comprovaram o fato. Pesquisadores apresentaram uma série de artigos e o local onde se localizavam. Em seguida, pediram aos voluntários que encontrassem os produtos. As instruções podiam ser transmitidas por escrito ou na forma de desenhos.
Eram atividades simples, como “pegue a manteiga na geladeira”, ou “ache a geleia na prateleira do mercado”. O tempo perdido pelos voluntários ao realizar as tarefas em silêncio foi 50% maior do que quando eles mesmos se davam “ordens” orais para encontrar o que era pedido. Falar sozinho se mostrou especialmente produtivo quando vários pedidos eram feitos simultaneamente.
Algumas pessoas “refazem o caminho” do presente para o passado (das ações mais recentes até o momento da perda). Outras fazem o contrário. Outras, ainda, evocam as ações sem nenhuma ordem. O importante é que, seja qual for o caso, o telefone celular é sempre achado rapidamente. E não é preciso “pagar o mico” de dar três pulinhos, especialmente na frente de estranhos. O santo não se importa com a quebra da promessa.
Outra utilidade é quando estamos desenvolvendo diversas tarefas, como verificar e-mails, cumprimentar colegas, organizar a agenda, atividades típicas do início do dia para muita gente. “Conversar” com o monitor pode parecer estranho, mas organiza as ideias, permite encontrar as palavras mais adequadas para a redação da correspondência, estabelecer a lista de prioridades para o dia.
Estudos realizados nos EUA indicam que falar sozinho facilita até na hora das compras, em especial nos locais já conhecidos. Murmurar “preciso de feijão, batata, sabonete…” aparentemente aciona nossos sensores e facilita a movimentação entre as gôndolas do supermercado. Funciona da mesma forma na hora de retirar os ingredientes de uma receita culinária da geladeira.
Sinais de problemas
Sempre que estamos muito atarefados e principalmente a partir da meia idade, falar sozinho se torna cada vez mais comum. A capacidade de se lembrar de todas as coisas que relacionamos para executar diminui e, por isto nos obriga a algumas “ajudas” para organizar as atividades do dia.
Além de falar sozinho para redigir a “agenda mental”, amarrar um fio no dedo, mas, neste caso, é importante que a “bengala psicológica” seja reservada para situações especiais. Quando se torna rotineiro, uma espécie de hábito, a eficácia tende a diminuir.
Falar sozinho em determinadas situações, no entanto, pode significar algum tipo de transtorno mental. Com a senilidade, pode-se inaugurar um período de solilóquios (conversas com um interlocutor inexistente ou ausente). Isto é perfeitamente normal, desde que não prejudique as atividades do dia a dia, mas algumas pessoas passam a acreditar que mantiveram o diálogo e deixar de realizar muitas coisas, quem podem ser muito importantes.
Um problema mais complexo é quando o indivíduo passa a ouvir vozes e responder a elas. Para quem observa, ele está falando sozinho. Para ele, respondendo a certas interlocuções – e algumas delas podem ser bastante assustadoras.
É o caso da esquizofrenia (sem causas perfeitamente estabelecidas, mas com um componente genético), em que ocorre uma desorganização de pensamentos, sensações e emoções. O transtorno pode se apresentar sob diversos aspectos e demandar controle psiquiátrico para que o paciente viva com qualidade.
Mas a esquizofrenia atinge apenas 1% da população. Outras demências (como o mal de Alzheimer e a demência vascular), especialmente na terceira idade, também podem fazer com que o paciente exiba o comportamento de falar sozinho. O prognóstico depende das condições do indivíduo.
Falar sozinho, portanto, é necessário, adequado e até divertido. Pessoas que têm este hábito não precisam se sentir diferentes ou doentes: é apenas uma forma de organização do pensamento. Para quem gosta de contar piadas, a dos que falam sozinhos é mais uma que deve entrar para o rol do “politicamente incorreto”.