A dupla ou múltipla personalidade é um transtorno ainda discutido pela comunidade acadêmica, apesar de ser reconhecida oficialmente pela OMS (Organização Mundial de Saúde). Atualmente, esta condição patológica é chamada personalidade dissociativa. É uma doença em que o paciente desenvolve outras personalidades, para fazer frente a situações que não consegue suportar.
O diagnóstico leva em conta períodos de amnésia, em que o portador do transtorno não tem controle de suas ações. Normalmente, ao ser inquirido pelo terapeuta (ou psiquiatra), o paciente simplesmente responde que não fez nada no período do lapso. Entretanto, aparentemente, outra personalidade assume as funções ativas do dia a dia, deixando a personagem traumatizada num estado semelhante à catatonia (situação em que o paciente pode ficar horas sem fazer um único movimento consciente).
O transtorno dissociativo de personalidade difere da esquizofrenia; nestes casos, ocorre uma cisão das funções do cérebro, mas não da personalidade. Na esquizofrenia o paciente sofre alucinações, descuida-se da aparência e torna-se hostil. Na personalidade múltipla, uma ou mais personagens podem apresentar estes sintomas, mas existe sempre uma personalidade central, que conhece todas as outras e é social e psicologicamente ajustada. As demais, que se mostram agressivas, medrosas, astênicas, etc., representam respostas a severos traumas, normalmente ocorridos na infância.
A raiva e o medo
A evolução dotou os seres vivos de instrumentos para detectar sinais de perigo e, no momento crítico, decidir se devem lutar ou fugir. Nestas situações, os níveis de adrenalina no sangue disparam e os organismos são dotados provisoriamente de força e resistência extraordinárias. É o caso de um pai que levanta um carro para resgatar o filho atropelado, ou de uma vítima que corre a velocidades incríveis para escapar de um assalto.
Aparentemente, a exposição constante a situações que geram medo ou raiva é uma das principais causas do transtorno dissociativo de personalidade. Sujeito frequentemente a dificuldades, o paciente se dissocia: constrói outra personalidade para fazer frente, por exemplo, à violência doméstica. A criança dócil e tímida torna-se violenta e irritada de um momento para o outro, surpreendendo o agressor.
O caso mais bem documentado desta psicopatologia é o de Shirley Ardell Manson, violentada pela mãe, provavelmente esquizofrênica, durante a infância, popularizado pelo livro “Sybil”, de Flora Rheta Schreiber, baseado nos relatos da psicanalista freudiana Cornélia Wilbur, num tratamento que durou quase 20 anos e envolveu hipnose e uso de medicamentos psiquiátricos.
A paciente desenvolveu 15 personalidades, além da sua; a décima-sexta seria a fusão de todos (havia dois homens) numa pessoa integrada. A autora descreve duas personalidades, ambas de nome Peggy: Peggy Lou é briguenta, sempre preparada para responder. Peggy Ann está quase sempre amedrontada.
Além delas, Vicky é a linha de memória de todos, centrada e sem sintomas de distúrbios psiquiátricos, Ruthie, uma garotinha de dois anos que viveu a ”cena primal”: a visualização de uma relação sexual dos pais. Esta situação normalmente não é traumática, mas, neste caso, os pais eram extremamente pudicos, vinculados a uma crença fundamentalista, e nunca demonstravam afeto em público.
Sybil teria desenvolvido ainda uma personalidade para lidar com a menstruação (a mãe a teria violado quando verificou que a jovem havia entrado na puberdade, mostrando “o que os homens fazem com as mulheres”), dois personagens masculinos, que seriam a compensação da frustração do pai por não ter filhos homens (Sybil era fila única) e outros com tendências suicidas ou expansivas.
Estas personalidades tinham tanta independência que chegaram a desenvolver habilidades específicas: Vicky falava francês, Peggy Lou dominava multiplicação e divisão (nunca aprendidas por Sybil), Sid (um dos homens, abreviação de Sybil Isabel Dorsett) era um faz-tudo, desentupindo canos e consertando curtos-circuitos e Vanessa tocava piano. O relato de Schreiber chega a citar que o gato de Sybil regia de forma diferente, de acordo com a personalidade que estivesse “operando”.
As personalidades mantinham a idade que tinham no momento de sua aparição, entre dois e 16 anos. A última a surgir foi uma jovem, representante da adolescência não vivida por Sybil, em função das restrições religiosas e sociais que a personagem sofreu. Ela surge no final do tratamento, com características messiânicas: vem ajudar a integração, num momento em que todas as outras personalidades foram induzidas hipnoticamente a equiparar sua idade com a de Sybil, então com quase 50 anos.
As controvérsias
A própria analista de Sybil admitiu ter sugerido, através da hipnose, a existência das demais personalidades. Nega, entretanto, ter induzido a paciente a acreditar nelas. Alega ter usado os medicamentos e o transe hipnótico apenas para incentivar a manifestação das demais personalidades. O caso Shirley foi arquivado em 2004 e as anotações sobre o tratamento nunca foram divulgadas.
São poucos os casos registrados de personalidade múltipla. Especialistas tendem a admitir que ela possa ocorrer imediatamente a traumas, mas não geram personalidades com tanta independência e autonomia: são gerados num momento de dor (um estupro, por exemplo) e imediatamente arquivados pela consciência, quando a pessoa é saudável psicologicamente.
Portadores de paranoia e esquizofrenia podem ter sintomas mais duradouros, o que tornaria o transtorno dissociativo um subsintoma, e não uma doença em si. Circunstância favorável a este entendimento é o fato de que muitas pessoas expostas a situações muito traumáticas não conseguem se lembrar das respostas que conseguiram dar a elas: lembram-se do ataque e, depois disto, apenas de terem se safado do perigo.
Na arte e literatura
Em 1958, foi publicado o livro “As Três Faces de Eva”, que narra a história de uma Eva White, uma recatada dona de casa que cumpria as necessidades domésticas: Eva Black, sensual e provocante e, no fim da trama, a personalidade que funde as demais. Elas teriam surgido das dificuldades da Eva original em relação ao casamento, tanto em relação aos cuidados com o lar, quanto com o relacionamento sexual. Filme baseado nesta obra foi protagonizado por Joanne Woodward.
O poeta português Fernando Pessoa criou heterônimos para criar sua obra: Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos. Criou biografias diferentes para cada um deles, que são responsáveis por boa parte da obra do autor e apresentam características literárias diferentes. Muitos especialistas consideram que este é um caso de personalidade múltipla.
O filme “O Médico e o Monstro” narra a história de Dr. Jekill e Mr. Hyde se alternam no controle do corpo. O médico (Jekill) dedicou-se durante anos a provar que os homens são dotados de duas naturezas, uma boa e outra má: quando elas se equilibram, a pessoa vive uma vida normal, mas quando uma das naturezas se sobrepõe, ocorrem problemas: sofrer continuamente logros e prejuízos, ou dedicar-se ao vício, a luxúria ou ao crime. O pesquisador finalmente encontra uma droga capaz de fazer emergir o “lado B”, mas, ao ingeri-la, acorda Hyde, maldoso e sensual.
O filósofo espírita Hermínio C. Miranda, em sua obra “Condomínio Espiritual”, oferece outra explicação para o transtorno dissociativo de personalidade: entidades desencarnadas viriam assumir necessidades específicas de alguns encarnados, ocupando seu lugar, com vistas a manter sua sanidade.
Efetivamente, não existem relatos de pacientes com personalidade dupla ou múltipla terem desenvolvido psicopatologias mais graves, apesar de a doença ser indicada como possível agente de inúmeros suicídios.
A atriz Glória Menezes viveu um caso assim em 1970: desenvolveu três personalidades na clássica novela “Irmãos Coragem”, de Janete Clair. Ana Rosa viveu Estela e Esmeralda em “A Selvagem”, de 1971.