O trabalho escravo existe no Brasil ao menos desde 1532, quando surgiram as primeiras atividades agrícolas “ao sul do Equador”. Ao menos, era isto que os europeus recém-chegados à Idade Moderna (que tem início em 1453, com a tomada de Constantinopla pelos turcos) imaginavam.
Parte do território brasileiro foi oficialmente outorgada à Coroa portuguesa ainda antes da Descoberta: em 1494, o Tratado de Tordesilhas dividiu o mundo não cristão (as “terras descobertas e por descobrir”) entre Portugal e Espanha, as duas grandes potências navais da época.
A partir de 1500, o único interesse despertado pela Terra de Santa Cruz foi a identificação do pau-brasil (ou pau-de-tinta) junto ao litoral e às margens dos rios de planície, do Rio de Janeiro a Pernambuco. A madeira era utilizada para tingir tecidos, artigo raro – e caro – mesmo entre os povos ibéricos.
O trabalho escravo
As primeiras expedições extrativistas tentaram escravizar as populações indígenas que viviam no litoral. Os índios brasileiros, no entanto, ainda não haviam desenvolvido o conceito de acumulação: para eles, caçar, pescar, coletar e plantar pequenos roçados de agricultura familiar era suficiente para garantir alimento e sobrevivência.
Alguns anos depois, a colônia já estava dividida em 15 capitanias hereditárias (sistema que perdurou, ao menos formalmente, até o século XVIII). A maioria não prosperou, por falta de recursos e de colonos para garantir produção econômica viável. Três delas se destacaram:
Pernambuco, Bahia e São Vicente (onde foi fundada a primeira vila do Brasil), especialmente com a introdução do cultivo de cana-de-açúcar.
Antes de 1600, o país já contava com mais de 250 plantations – grandes propriedades rurais dedicadas à produção de um único produto (além da cana, foram introduzidas as culturas de tabaco e de algodão). A mão-de-obra encontrada foi a “importação” de africanos, caçados em suas terras natais e trazidos à força para uma terra estranha.
O tráfico negreiro
O comércio de escravos através do Atlântico foi uma atividade comercial bastante lucrativa durante mais de 300 anos, do século XVI ao XIX. Mulheres e homens eram capturados no continente africano, especialmente do golfo da Guiné até Angola.
O destino: Brasil, Caribe e sul dos EUA. Historiadores da África denominam o tráfico humano como Maafa – que significa “grande desastre” em suaíli. Outros estudiosos utilizam os termos “Holocausto Africano” e “Holocausto da Escravidão”.
O Império Português foi o primeiro a se engajar no estranho comércio, seguido pelos ingleses, franceses, espanhóis e holandeses. O trabalho escravo foi empregado nas lavouras de cacau, tabaco, cana-de-açúcar, arroz, na extração de ouro e prata, na indústria da construção, no corte de madeira e em serviços domésticos.
Os ingleses cunharam um eufemismo para o tráfico: os escravos eram classificados como “servos permanentes” ou “aprendizes por toda a vida”. Cem anos depois do início do comércio, os escravos (e seus descendentes) já eram considerados propriedade dos senhores, uma espécie de mercadoria. Havia discussões teológicas a respeito de os negros escravizados serem “criaturas de Deus”.
Com a Revolução Industrial, no século XIX, o trabalho escravo começou a entrar em decadência. A Dinamarca foi o primeiro país a proibir o comércio, em 1803 (a legislação foi promulgada formalmente em 1792, mas houve um período de “adaptação”).
A Inglaterra, maior potência naval da época, impôs restrições ao tráfico transatlântico, inclusive com pesadas multas para embarcações que transportassem negros. À época, a Família Real portuguesa havia transferido a sede do Império para o Rio de Janeiro; os portos brasileiros foram abertos às nações amigas (antes disto, a produção brasileira só podia ser embarcada para a Metrópole, onde era negociada para outros países).
Por “nações amigas”, entenda-se apenas a Inglaterra. A comitiva portuguesa só abandonou Lisboa às vésperas da invasão por Napoleão Bonaparte, que submetia quase toda a Europa ao seu poderio militar. O Brasil, no entanto, demorou em render-se à nova ordem mundial: foi a última nação a proibir o tráfico (o último navio negreiro a cruzar o Atlântico aportou no Rio de Janeiro em 1831).
O comércio continuou. Deixando de ser ilegal, caiu no contrabando: um grande número de pessoas continuou a ser caçada e trazida especialmente para o Brasil e para Cuba até 1860, quando a pressão – e a fiscalização – britânica finalmente destruiu a atividade.
O Brasil também ostenta o triste título de ser a última nação do Ocidente a abolir a escravatura. Foi um processo “lento, gradual e seguro”, características semelhantes às da Abertura Democrática, a partir dos anos 1970. Em 1871, foi declarada a Lei do Ventre Livre – a partir de então, filhos de escravos não poderiam ser escravizados – mas continuavam vivendo nas mesmas fazendas, engenhos e usinas em que seus pais sofriam com o trabalho degradante.
Em 1885, depois de muita discussão no Parlamento, a Lei Saraiva-Cotegipe (também conhecida como Lei dos Sexagenários) declarou livres todos os escravos com mais de 65 anos. Estudos indicam que, na época, a expectativa de vida de um escravo ao nascer era de 19 anos. Finalmente, em 1888, foi outorgada a Lei Áurea, pela princesa Isabel, regente do Império do Brasil, que libertava todos os escravos: encerrava-se a fase formal da escravidão no país.
Escravidão hoje
No Brasil, considera-se trabalho escravo como aquele em que o trabalhador é submetido a condições degradantes (que retiram a dignidade e expõe a saúde global e a integridade do empregado), a jornadas exaustivas permanentes e duradouras, acima da capacidade física, e a formas de cerceamento da liberdade (servidão por dívidas, isolamento geográfico e retenção de documentos).
A pena para a manutenção de “trabalho análogo ao de escravo” (outro eufemismo), de acordo com o Código Penal, varia entre dois e oito anos de reclusão, além de multa correspondente à violência. Além do proprietário das terras em que a situação anômala é verificada, estão sujeitos também os agentes de vigilância que impeçam eventuais fugas e agenciadores (os populares “gatos”). A pena é acrescida de metade, em caso de escravização de menores de 18 anos ou da prática por motivo de preconceito de cor, etnia, religião ou origem.
Entre as condições degradantes (leia-se trabalho escravo) já identificadas por fiscais dos órgãos ligados ao trabalho e emprego, destacam-se: alojamento precário (muitas vezes não há camas, instalações sanitárias, energia elétrica, água potável, nem condições mínimas de higiene), falta de assistência médica (mesmo para acidentes de trabalho), não fornecimento de equipamentos de segurança, péssima alimentação (sem condições mínimas para suprir as necessidades nutricionais), maus tratos e violência contra os trabalhadores.
Outros elementos contribuem para corroborar o cerceamento da liberdade: retenção dos pagamentos (identificados em contratos “por empreitada”, que obrigam os trabalhadores a passar longos períodos esperando receber algum dinheiro), compra de mantimentos, medicamentos e artigos de higiene exclusivamente junto ao empregador ou ao “gato”; e isolamento geográfico (sem transporte público, nem meios de comunicação: os trabalhadores, longe da família e da comunidade, ficam ainda mais sujeitos ao trabalho escravo).
Outra prática comum é a retenção de documentos. O “gato” ou o empregador apreende os documentos, geralmente carteira de trabalho e carteira de identidade, pretensamente para fazer o registro, visando impedir fugas e denúncias.
O governo brasileiro assumiu em 1995 a existência de trabalho escravo no país, junto à OIT (Organização Internacional do Trabalho, vinculada à ONU). Foi um dos primeiros países a reconhecer esta infeliz condição em suas relações de emprego.
Tradicionalmente, o trabalho escravo é encontrado na zona rural, na produção extrativista e agropecuária. A maior fiscalização, no entanto, tem encontrado esta condição também em grandes centros urbanos, especialmente na indústria têxtil e na construção civil: homens, mulheres e crianças, muitos deles estrangeiros sem visto de trabalho no país, são submetidos a esta situação aviltante.
Mais de 47 mil trabalhadores foram resgatados do trabalho escravo desde 1995; 83% deles eram homens entre 18 e 44 anos (a maioria – 54% – da lavoura da cana-de-açúcar e da pecuária). Um terço deles era analfabeto. Entre os demais 40% cursaram apenas até o 5º ano do ensino fundamental.
Em 2014, o Congresso Nacional aprovou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 57A/2014, que define o trabalho escravo e prevê a expropriação das terras onde a condição é identificada. A proposta está em fase de regulamentação.