Morte cerebral ou encefálica é a falência definitiva e irreversível das funções cerebrais. Nestes casos, a família, mesmo em situação de luto e perda, pode concordar que o ente querido seja um doador de órgãos. Para citar um exemplo prático, a morte cerebral é semelhante – guardadas as proporções – a desligar um ventilador diretamente na tomada. Por alguns instantes, as pás continuam girando; o mesmo acontece com os nossos órgãos.
Órgãos nobres, já sem nenhuma utilidade para o doador, podem ser retirados até algumas horas depois de constatada a morte cerebral (por dois médicos não participantes dos serviços de captação ou de transplante). Se houver morte cardíaca (a cessação dos batimentos do coração), no entanto, todo o organismo fica comprometido, por falta de oxigenação (é o sangue, bombeado pelo músculo cardíaco, que leva oxigênio, nosso “combustível”, para todas as células do organismo). Nestes casos, as doações ficam mais restritas.
Que órgãos podem ser doados?
Caso o paciente ainda esteja no estágio de morte cerebral ou encefálica (as principais causas são traumatismo crânio-encefálico, acidente vascular encefálico e encefalopatia anóxica), é possível manter o coração batendo com aparelhos até a retirada dos rins, fígado, coração, pulmões, pâncreas e medula óssea. Os órgãos duplos (rins e pulmões) podem beneficiar até dois pacientes crônicos em estado grave.
Já no caso das paradas cardíacas, em alguns casos, podem ser retirados apenas tecidos, como as córneas, a pele, vasos sanguíneos e alguns ossos e cartilagens. Diversos pacientes na fila dos transplantes (ou queimados, no caso de transplante de pele) são beneficiados ao mesmo tempo com a retirada de tecidos humanos.
Apenas para tranquilizar os parentes da pessoa que sofreu morte cerebral: o corpo é tratado pela equipe médica imediatamente após a retirada e não apresenta sinais de mutilação. Esta retirada só ocorre em caso de acidentes ou, em alguns casos de homicídio.
O tempo máximo para a retirada e transplante de um coração varia entre quatro e seis horas. O fígado resiste em boas condições por até 24 horas e os rins ainda podem ser transplantados entre 24 e 48 horas da morte cerebral (estes prazos são o tempo até a efetiva implantação do novo órgão, que ocorre sempre em cirurgias delicadas, mesmo que as técnicas tenham se aprimorado muito nos últimos 50 anos). Pacientes de sangue tipo O são os que mais sofrem nas filas de espera, porque só podem receber órgãos de doadores com o mesmo tipo sanguíneo.
Quem morre de doenças crônicas ou degenerativas não é candidato a ser doador de órgãos, mesmo que tenha registrado este desejo por escrito. Isto, no entanto, é mais um motivo de resistência por parte dos familiares; após uma enfermidade mais ou menos longa, torna-se mais fácil aceitar a morte. No caso de acidentes, tudo acontece rápido demais.
Algumas equipes cirúrgicas têm obtido sucesso no transplante de rostos e membros. Nestes casos, o caixão do doador, por motivos óbvios, precisa ser lacrado para as cerimônias fúnebres. Vale lembrar, no entanto, que diversos acidentes obrigam a lacração.
Alguns mitos sobre a doação: alguns pacientes, sabendo que são potenciais doadores, terão o tratamento negligenciado. Vale lembrar que o médico intensivista não é o mesmo que determina o diagnóstico de morte encefálica, que, por sua vez, não é o mesmo que faz a captação.
Seja como for, é difícil imaginar um paciente morrer para salvar a vida de anônimos.
Outra lenda urbana é a do “Boa Noite, Cinderela”. Um rapaz ou moça encontra alguém atraente na balada, dançam, conversam e decidem ir para um hotel ou motel. As vítimas acordam no dia seguinte, em uma banheira cheia de gelo e um corte lateral, indicativo da retirada de um rim (que seria vendido no mercado negro). Apesar de bastante divulgada, inclusive na internet, a história não tem fundamento: a retirada do órgão só pode ser realizada em um centro cirúrgico bem equipado, por uma equipe de médicos e enfermeiros.
No Brasil, 70 mil pessoas esperam por um transplante e um grande número morre na fila de espera. Desinformações e preconceitos como estes só servem para dificultar este gesto de solidariedade e precisam ser combatidas.
Doações intervivos
Adultos saudáveis também são candidatos a serem doadores de órgãos. É comum pais e mães oferecerem um órgão para salvar seus filhos. O transplante entre irmãos também pode ocorrer, mas uma bateria de exames deve ser realizada antes da cirurgia, para constatar a compatibilidade entre o doador e o transplantado.
Parte do tecido de um pulmão pode ser retirada sem danos às funções respiratórias do doador. O mesmo acontece com o fígado: uma pequena porção do órgão (entre 20% e 60%) é suficiente para eliminar deficiências hepáticas. O fígado se regenera com relativa facilidade, recuperando até 90% das funções. Um dos rins também pode ser retirado sem prejuízo das funções renais.
Uma lei de 1997 garante que doações intervivos podem ser feitas entre familiares de até quarto grau (é proibida a comercialização de qualquer órgão ou tecido, retirado de um paciente vivo ou com morte cerebral constatada).
Os casos de doação de medula óssea recebem tratamento especial. Existem bancos de medula que funcionam de forma semelhante aos de captação de sangue: o provável doador se inscreve e faz alguns exames. O transplante de medula (em que é retirada apenas uma pequena parte é retirada), um dos principais tratamentos de combate a leucemias e outras doenças do sangue, pode ser feito inclusive de habitantes de países diferentes, desde que seja constatada a compatibilidade.
No entanto, quanto mais distantes nas relações de parentesco, maiores as chances de rejeição. Alguns pacientes que receberam, por exemplo, parte da medula de um doador desconhecido, precisam tomar medicamentos imunossupressores pelo resto da vida.
Regras para doar
Para se tornar doador de órgãos, não é necessário deixar nenhum documento por escrito – e muito menos registrar este desejo nos documentos de identidade. Ainda assim, muitas instituições ainda emitem carteirinhas para doadores, especialmente para os que enfrentam pressões familiares.
Potencialmente, todos os cadáveres com morte encefálica são doadores em potencial. Para a constatação deste estágio, por determinação do Conselho Federal de Medicina, o paciente deve ter registro e identificação hospitalar, a causa do coma precisa estar claramente estabelecida, o paciente não tenha entrado em hipotermia (temperatura inferior a 35°C) nem em hipotensão e não esteja sob medicação de depressores do sistema nervoso central.
Algumas pessoas religiosas alegam que irão precisar de seu corpo intacto, especialmente depois do Juízo Final, quando almas e corpos, de acordo com algumas tradições, voltarão a se reunir. As Testemunhas de Jeová não aceitam receber transfusões de sangue; nestes casos, os transplantes ficam comprometidos, porque dificilmente a cirurgia pode dispensar esta providência. Seja como for, são crenças legítimas, e devem ser respeitadas por todos. A maioria das religiões, porém, entende que a doação é um ato de amor e deve ser incentivada.