Atualmente, os sobrenomes são fundamentais para diferenciar as pessoas. Sem eles, acontecem situações prosaicas, divertidas e até deprimentes. Em 2011, Reginaldo José da Silva foi preso pelo homicídio da mulher – ele, entre tantos outros homens, não se conformava com a separação. Em 2001, Reginaldo convenceu a ex-companheira a ir com ele. No “ninho de amor”, estuprou e estrangulou a jovem e pôs o pé no mundo e nunca mais foi visto. Este Reginaldo é natural de Alagoas.
Por sorte ou azar, outro Reginaldo, residente em Araraquara (SP) tinha estranhas coincidências com o homicida. Além do nome idêntico, as duas mães que deram Reginaldos à luz também eram homônimas. Por conta disto, foi expedido um mandado de prisão contra o Reginaldo inocente, que, na época, morava com a mulher e as duas filhas. A burocracia seguiu seu curso e prendeu o homem errado.
Este é apenas um erro bastante comum do sistema de execuções penais. Neste caso, por exemplo, os dois homens tinham nomes e sobrenomes idênticos e a semelhança se estendia às respectivas genitoras. O que pode ter acontecido em uma época na qual as pessoas eram conhecidas como “João” ou “Maria”?
Vale notar que o registro civil só foi introduzido com a Revolução Francesa; antes disto, havia apenas o batistério como forma de identificação. Nas cidades maiores, os sacerdotes recebiam excelente educação, mas nas aldeias, os padres não estudavam muito – isto determinou a deformação da escrita de muitos sobrenomes; eles apenas escreviam o que ouviam (ou interpretavam).
O registro dos sobrenomes (ainda na certidão de batismo) é bastante recente. Ele foi instituído pela Igreja Católica no Concílio de Trento (1545-1563),convocado por Paulo III para assegurar a disciplina e a unidade de Igreja – foi uma resposta à Reforma Luterana, seguida de diversos cismas.
Marca registrada
Durante algumas gerações, a família mantém um mesmo sobrenome. No Brasil, a prática mais usual (mas não a única) é que os filhos “herdem” os mesmos nomes dos pais. Na linha patrilinear, por este sistema, as mulheres adotam o nome do marido – isto concorre para que, em 50 ou cem anos, alguns parentes não guardem nenhuma semelhança entre os sobrenomes.
A “herança dos sobrenomes” surgiu na Europa, durante da Idade Média, e foi transferida para os continentes colonizados: América, Oceania e partes da Ásia e da África. Antes disto, porém, ao menos entre pessoas com mais destaque na comunidade, era comum o uso do nome do pai.
Apesar disto, várias nações já adotavam a expressão “filho de” para diferenciar as famílias. “Ben”, “Son”, “Ibn”, “Bin”, “Van” e outras partículas são exemplos de tentativa de estabelecer “quem é quem”. Desta forma, um “Anthony” inglês, filho de um “John”, passou a assinar “Anthony Johnson”.
Os italianos preferiram o plural, assim como acontece com as maravilhosas massas criadas ou aperfeiçoadas por eles (“un spaghetto, due spaghetti”, por exemplo). Como se vê, o plural no idioma italiano é obtido com a supressão da última letra do substantivo, sempre substituída por um “I” (“tagliarine”, “tagliarini”).
Assim, os filhos de um cidadão chamado Cavalcante passaram a assinar o nome de batismo seguido por um “Cavalcanti”. Muito antes disto, parte da sociedade romana – os patrícios, palavra que deu origem a “patriota” – reclamavam o direito de descendência das primeiras famílias a se estabelecerem em Roma – oficialmente, em 753 a.C.
O famoso general romano Júlio César, que estabeleceu uma ditadura no século I a.C., uma espécie de primeiro passo para a queda da República, declarava descender da Gens Júlia. O nome de registro do ditador era Caio. Mais uma curiosidade: o primeiro imperador a ser entronizado, Otávio (em 31 a.C.), era filho adotivo de César, mas preferiu adotar o epíteto “Augusto”. Otávio Augusto é um nome bastante comum no Brasil.
Os sobrenomes também podem ter origem na profissão, aspecto físico ou na região geográfica. Desta forma, temos os sobrenomes: Cook (cozinheiro), Taylor (alfaiate; em francês, é Sartre), Le Petit (o pequeno), Mounier (moleiro), Fritier (vendedor de peixe frito). Com o tempo, os sobrenomes se tornaram oficiais.
Estado, família, propriedade
No século XIX, o inglês Friedrich Engels – amigo e patrono de Karl Marx, filósofo alemão formulador do chamado socialismo científico – escreveu o livro “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”.
Existem alguns equívocos na obra, já que os pesquisadores europeus (sempre surpreendentemente etnocêntricos) utilizavam relatos de missionários religiosos e até mesmo de marinheiros para a descrição dos novos “povos bárbaros” – habitantes da América, Ásia, Oceania e África – o que promovia distorções que às vezes comprometiam toda uma análise filosófica ou antropológica.
Engels, no entanto, acertou em cheio nas necessidades fundamentais para a adoção de sobrenomes: os “apêndices” dos nomes demonstraram eficiência para identificar grupos parentais e o patrimônio de cada família, além de apresentar oficialmente os herdeiros dos muitos tronos europeus.
Além da transmissão de patrimônios e legados, os sobrenomes garantiram mais agilidade na entrega de cartas e encomendas. Imagine a confusão que era fazer as correspondências chegarem a um José ou um Pedro. A complicação crescia ainda mais, quando nos lembramos de que, na maioria das aldeias, não havia nem nome de ruas.
Sobrenome forçado
Quando os moradores judeus da península Ibérica foram forçados a aderir à Religião Católica, no início da Idade Moderna, eles precisaram adotar um sobrenome cristão. A maioria optou por substantivos comuns, como árvores, animais e minerais. Assim nasceram os sobrenomes Leão, Coelho, Nogueira, Pereira, Rocha, Parreira, Oliveira, etc. A conversão forçada não rendeu os resultados perseguidos, mas alimentaram muitas masmorras e fogueiras da Inquisição.
Em tempo: os sobrenomes “Costa” e “Silva” são muito comuns, que, no século XVI, recebeu muitos judeus exilados (depois houve a miscigenação e os escravos alforriados, em muitos casos, adotaram os nomes dos antigos donos). “Costa” foi o nome assinado pelos imigrantes que permaneceram no litoral e “Silva”, por quem se aventurou pelo interior, pela selva. Por que existem tantos Silvas no Brasil? Porque os principais donos de terra transferiram seu sobrenome para todos os habitantes da senzala.
Filho de peixe, peixinho é
Esta curiosidade é muito pouco conhecida: “Rodrigues” significa “filho de Rodrigo”; “Fernandes”, filho de “Fernando”. Posteriormente, foram adotados os adjetivos “Júnior” ou simplesmente “Filho” e “Neto”, numa tentativa de marcar o nome pela posteridade. Algumas crianças são batizadas para homenagear os tios; assim, recebem o sobrenome “Sobrinho”.
Alguns sobrenomes foram criados apenas para descrever as características dos seus “donos”. Assim, surgiram as famílias Severo, Franco, Leal, por exemplo, mesmo que os filhos não tenham necessariamente herdado os dados de personalidade dos seus genitores.
Mais curiosidades sobre os sobrenomes
O sobrenome mais comum no Canadá é Li, um termo chinês. O país possui uma das maiores colônias chinesas do mundo. Na China, cada dinastia possui sobrenomes diferentes, e eles não passam de cem (enquanto no Japão há 200 mil). Na dinastia Han, os nomes mais comuns são Wang, Li e Zhiang, usados por 22% dos habitantes (quase 300 milhões de pessoas).
No Ocidente, o prenome é anteposto ao sobrenome. Em outras culturas, especialmente no Sudeste Asiático, o sobrenome vem primeiro. É assim que assinam os coreanos, laosianos e vietnamitas. É por isto que vemos tantos Wang, Kong, Hang, e Kwon, especialmente nas listas de primeiros colocados nos vestibulares.
No Brasil, é que as mulheres, ao se casarem, adotem o sobrenome dos maridos, mas sem abrir do nome de família. Não é uma regra específica: elas podem manter o nome original ou “trocar” de sobrenome com os cônjuges. Nos países anglo-saxônicos, no entanto, a maioria das mulheres renunciam ao chamado “maiden name” (nome de donzela).