Tudo começou antes mesmo do surgimento do Homo sapiens. Há 1,5 milhão de anos, nosso primo Homo erectus já fazia facas de pedra para caçar, cortar galhos e destrinchar animais. Na Idade do Bronze (que tem início em 3000 a.C., mas cada povo aprendeu a trabalhar os metais em épocas diferentes), as facas metálicas passaram a fazer parte do instrumental humano. Os talheres chegaram à Europa apenas no século XI – antes disto, apenas as facas eram usadas, mas as refeições eram feitas principalmente com as mãos.
Domênico Selvo era doge de Veneza, o principal porto marítimo do norte da Itália. Na época, a cidade era independente e doge era a designação para o chefe ou primeiro magistrado eleito na república veneziana, que dominava todo o leste e nordeste da península Itálica. Selvo era aliado do Império Bizantino (o Império Romano do Oriente, bem mais sofisticado do que os reinos e repúblicas europeus).
Como em todas as alianças da Idade Média, os casamentos arranjados eram comuns. Salvo recebeu a mão da princesa Teodora de Bizâncio, filha do imperador Constantino X. A jovem atravessou o mar Adriático e, em seu enxoval, levou um garfo de dois dentes, para espetar a comida e leva-la à boca: foi um escândalo, uma verdadeira heresia.
São Pedro Damião assim descreve os hábitos de Teodora: “não tocava os acepipes com as mãos, mas fazia os eunucos cortarem-nos em pedaços pequenos; mal os saboreava, levando-os à boca com garfos de ouro de dois dentes”.
De acordo com as supersticiosas tradições europeias, o alimento era uma dádiva de Deus e devia ser comido com as mãos. Além disto, o talher de Teodora lembrava o formato de um forcado, instrumento muito semelhante ao utilizado por Satanás para torturar as almas perdidas (o tridente infernal é visto frequentemente em pinturas da época).
A princesa morreu jovem, aos 25 anos. De acordo com descrições da época, “suas carnes gangrenaram”. A morte terrível e precoce da princesa foi encarada pela corte veneziana – e pelos muitos casos disseminados pelo imaginário popular – como um justo castigo pelo seu pecado.
Os gregos já usavam talheres em suas refeições (ainda no século IV a.C.), mas o hábito foi abandonado com a decadência das cidades-estado da península helênica (e a concomitante ascensão de Roma, que mantiveram as colheres à mesa, mas apenas para servir os pratos).
Quando os navegantes portugueses chegaram à China no século XIV, foram considerados bárbaros por comerem com as mãos (entre outros motivos). Os hashi (pauzinhos usados como talheres) já eram usados no Oriente desde épocas incalculáveis. A palavra hashi significa “instrumentos de bambu para se alimentar rapidamente”.
Uma curiosidade: os citas, grupo iraniano de cavaleiros nômades que invadiu Canaã (atual Israel) usavam instrumentos semelhantes aos hashi. Os talheres foram encontrados em um sítio arqueológico próximo a Megido. A descoberta indica que pode ter havido relacionamento comercial entre o Oriente Médio e o Extremo Oriente há mais de dois mil anos.
Novos hábitos
A novidade demorou bastante para ser aceita pelos europeus. Além do aspecto pecaminoso, o garfo de dois dentes não era nada prático:
os alimentos caíam do talher ou dificultavam a vida de quem queria enrolar o espaguete (a partir do século XIV, o macarrão, inventado pelos chineses, caiu no gosto dos italianos; com a chegada dos tomates, depois da descoberta da América, o prato tornou-se iguaria nacional).
Havia também uma questão de virilidade (ou machismo, para usar o termo correto). Os homens carregavam suas próprias facas (em uma festa, o anfitrião não precisava se preocupar com talheres). O mesmo instrumento usado para golpear um inimigo era empregado para descascar frutas ou destrinchar uma ave assada.
Apenas no século XVII, o cardeal Richelieu, chefe do conselho do rei francês, fervoroso defensor das boas maneiras, sugeriu que as facas deveriam ter usos específicos – uma como talher, outra como arma, etc. O religioso fez o que pôde para banir o que considerava falta de etiqueta à mesa, como engordurar-se com um pernil gorduroso comido com as mãos.
Com o “esforço civilizatório” do cardeal, um conjunto individual simples de talheres, a cadeia (garfo, colher e faca, que ficam presos em uma argola de metal) tornou-se comum entre a nobreza e o clero a partir do século XVI, mas as classes populares continuaram ignorando os instrumentos e tomando os alimentos com as mãos.
Mesmo assim, na corte de Luís XIV, o “Rei Sol” da França, um monarca absolutista que reinou entre 1643 e 1715, os talheres eram colocados juntos aos pratos nos banquetes, mas quase ninguém os utilizava. Seja como for, a disposição dos utensílios, até hoje parte da etiqueta francesa, com pratos, copos e talheres colocados de acordo com a ordem dos pratos e bebidas a serem servidos, começou a ser criada nessa época.
As colheres
Estudos arqueológicos indicam que a colher já nasceu como talher, apesar de sua semelhança com outros instrumentos, como pás e espátulas. Foram encontradas colheres feitas de marfim, madeira e pedra datadas de mais de 20 mil anos. Pinturas rupestres indicam que estes talheres eram semelhantes a conchas e de uso coletivo.
Quando o pão foi criado na região da Mesopotâmia (atual Iraque), há 12 mil anos, já eram usadas colheres para regar a massa com caldo. Era necessário umedecer os primeiros pães, já que ainda não havia sido inventado o fermento – os pães eram duros, secos e não podiam ser comidos logo depois de assados, porque eram muito amargos. Era preciso “lavá-los” várias vezes, até que se tornassem palatáveis. As colheres eram fundamentais nesta tarefa.