A história da Bíblia do Diabo tem início no século XIII, provavelmente através da escrita de monges de um mosteiro beneditino de Podlazice, na Boêmia (atual República Checa). Não se trata de um livro com anotações inspiradas pelo “príncipe dos demônios”.
O nome oficial é “Codex Gigas” e o apelido surgiu principalmente em função de uma grande ilustração do Diabo em uma das páginas internas. Algumas lendas, no entanto, reforçaram a ideia de algo maléfico em torno do livro.
Atualmente, o manuscrito, considerado o maior documento produzido na Idade Média ainda preservado, está exposto na Biblioteca Nacional da Suécia, em Estocolmo. “Codex Gigas” é uma expressão latina que significa “código (ou índice) gigante”.
As características da Bíblia do Diabo
A Bíblia do Diabo é realmente impressionante. As capas foram feitas em madeira, revestida com couro e com proteções metálicas. As dimensões (22 centímetros de espessura, 50 centímetros de largura e 92 centímetros de altura), aliadas ao peso (75 quilos) confirmam o título de “maior manuscrito da Idade Média”.
Atualmente, o livro da biblioteca sueca possui 310 folhas, mas especialistas são unânimes em afirmar que algumas foram retiradas nas idas e vindas da Bíblia do Diabo. É possível que estas lacunas sejam apenas códigos de vivência dos beneditinos, sem prejuízo para a integridade do manuscrito.
As páginas foram confeccionadas em papel velino (do francês vélin, pele de vitela). O uso deste tipo de couro em lugar do pergaminho (feito com pele de cabra ou ovelha) foi uma inovação da Baixa Idade Média. O resultado foi a produção de páginas mais uniformes, finas e acetinadas. Ao todo, 160 animais “cederam” couro para a produção da Bíblia do Diabo.
Idas e vindas
Uma nota logo na primeira página da Bíblia do Diabo aponta que o material foi produzido por monges do Mosteiro de Podlazice, o primeiro proprietário do Codex Gigas, finalizado provavelmente em 1229. No século XV, porém, a região foi tomada pelos hussitas, cristãos adeptos da Reforma proposta pelo monge Jan Hus, o primeiro representante boêmio a romper oficialmente com a Igreja Católica.
Jan Hus foi condenado pela Inquisição e morto em uma fogueira em 1415, fato que arrefeceu os conflitos entre católicos e reformistas no centro europeu. Os hussitas, no entanto, não tiveram a posse da Bíblia do Diabo. Em função de problemas financeiros, o manuscrito foi penhorado para os cistercienses, poderosa ordem monástica católica (entre 1145 e 1342, conseguiu eleger cinco papas).
A mesma nota inicial traz a informação de que o Codex Gigas retornou às mãos dos beneditinos do Mosteiro de Brevnov, também na Boêmia. O documento foi readquirido em 1295. De 1477 a 1593, a Bíblia do Diabo foi transferida para uma biblioteca da mesma ordem, na cidade de Brounov. Por fim, foi levada para Praga e mantida na coleção particular do rei Rodolfo II, famoso por ser um aficionado por textos de magia e alquimia.
Em 1618, estourou a Guerra dos 30 Anos, um conjunto de conflitos com motivações religiosas, dinásticas, territoriais e comerciais. 30 anos depois, os suecos invadiram e saquearam a capital da Boêmia, pondo fim às batalhas. No butim de guerra, o Codex Gigas foi transferido para o reino escandinavo, de onde só saiu, emprestado para a República Checa, por um curto período, entre 2007 e 2008.
O conteúdo da Bíblia do Diabo
A Bíblia do Diabo inclui toda a versão Vulgata Latina da Bíblia, a versão mais difundida e aceita pela Igreja Católica desde o século V. As exceções são o Livro dos Atos dos Apóstolos e o Livro do Apocalipse, que são provenientes de traduções mais antigas.
Os livros constantes do cânone bíblico sempre provocaram muita polêmica. Houve discussões sobre quais evangelhos deveriam ser admitidos, sobre a veracidade dos livros não escritos originalmente em hebraico ou aramaico, etc.
Completam o Codex Gigas: “Antiguidades Judaicas” e “Guerras dos Judeus”, escritos pelo historiador Flávio Josefo (que produziu sua obra no século I da Era Cristã), a versão completa da enciclopédia “Etymologiae”, de Isidoro de Sevilha, um compêndio de grande parte dos conhecimentos anotados pelos primeiros pais da Igreja, as “Crônicas Boêmias”, de Cosme de Praga, que narra a história desde a criação do mundo até a lendária fundação da Boêmia e atualidades do país.
Vários tratados de medicina, alfabetos (relações de santos), orações, uma lista dos benfeitores do Mosteiro de Podlazice, fórmulas de exorcismos e datas de celebração dos santos locais completam o Codex Gigas, que é muito bem ilustrado com iluminuras (desenhos aplicados às margens ou às capitulares – as letras iniciais de cada capítulo de um livro; no caso deste manuscrito, elas ocupam boa parte da página) em vermelho, dourado, azul, verde e amarelo, uma proeza para a época.
Pontos obscuros
As evidências de uma interferência sobrenatural (e talvez maléfica) na produção da Bíblia do Diabo começam com a uniformidade das 310 grandes páginas do manuscrito. A tarefa foi um esforço hercúleo e, aparentemente, todos os textos foram escritos (em letras góticas) por um mesmo monge.
Especialistas não conseguiram identificar sinais de que o Codex Gigas tenha sofrido alterações em sua confecção. Em toda a extensão, não há qualquer traço de doença ou de envelhecimento do escriba (nem mesmo de alterações do estado de espírito). Isto sugere que o material foi produzido em muito pouco tempo.
Os peritos, no entanto, afirmam que a obra não levou menos de 20 anos para ser concluída, e isto deu origem a algumas lendas. O fato mais intrigante, no entanto, é a ilustração da página 577: a figura do Diabo, de aproximadamente 50 centímetros de comprimento.
As páginas anteriores e posteriores ao desenho tenebroso estão com as cores mais esbatidas do que as demais. O motivo é que o velino, de origem animal, é muito sensível à luz e, uma vez que a maior parte dos consulentes quer ver a ilustração, este setor ficou muito mais exposto. Muitos místicos, porém, acreditam que o envelhecimento é apenas reflexo do “príncipe das trevas”.
Lendas
De acordo com um boato (que se espalhou rapidamente pela Boêmia), o monge que serviu como escriba da Bíblia do Diabo quebrou os votos monásticos (pobreza, castidade, obediência e renúncia à vida secular). O castigo para o pecado, que poucas vezes foi aplicado, consistia em emparedar vivo o infiel.
Para escapar da morte iminente, o escriba (que sempre permaneceu anônimo) prometeu a criação, em uma única noite, de um livro que unificaria todo o conhecimento cristão, garantindo a fama do Mosteiro de Podlazice. Esta seria a explicação para a uniformidade apresentada pela Bíblia do Diabo.
A lenda continua: à meia-noite, o monge percebeu que não conseguiria desincumbir-se da missão e, por isto, proferiu uma oração, não dirigida a Deus, mas ao Diabo. Em troca da conclusão do livro (pelo próprio Satanás), ele cedeu a alma, que estaria condenada a arder nas chamas do Interno por toda a eternidade. O manuscrito ficou pronto a tempo e o escriba incluiu a imagem do verdadeiro autor.
Durante muito tempo, a lenda foi considerada verdadeira, em função de uma tradução incorreta do termo latino “inclusus”, em referência ao autor. Entendeu-se que a palavra significa “incluso” (sinônimo de emparedado), quando ela significa simplesmente “recluso” (internado voluntariamente em um mosteiro).
Outro fato contribui para manter a polêmica e a aura de mistério em torno da Bíblia do Diabo. De acordo com Michael Gullick, especialista em textos antigos da Universidade de Bergen (Noruega), que analisou o material, tudo foi feito em um prazo muito exíguo. Manuscritos antigos não conseguiam manter a padronização das cores, já que as tintas eram obtidas com o esmagamento de insetos, o que provocava grande variedade de tonalidades, fato não identificado no Codex Gigas.