A lei complementar nº 135/2010 é uma legislação emendada à lei de condições de inelegibilidade, sancionada em 1990. A Ficha Limpa teve origem em um projeto de lei de iniciativa popular formulado por um grupo de juristas, que recebeu 1,6 milhão de assinaturas de apoio. Mesmo assim, o texto final da Ficha Limpa é uma farsa.
A lei impossibilita que um político possa se candidatar a cargos majoritários ou proporcionais por oito anos, caso tenha tido o mandato parlamentar cassado, tenha renunciado para escapar do projeto de cassação ou tenha sido cassado por um órgão colegiado (com mais de um juiz), mesmo que haja possibilidade de recursos a instâncias superiores.
O projeto foi aprovado pelas duas casas legislativas (Câmara dos Deputados e Senado da República) em maio de 2010; no Senado, a aprovação obteve unanimidade. No início de junho, a Ficha Limpa foi sancionada pela Presidência da República.
Em setembro de 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a constitucionalidade da Ficha Limpa e a sua aplicação nas eleições do mesmo ano, para prefeitos e vereadores. Dois anos antes, o STF havia se posicionado contra a aplicação imediata, já que seria necessário um prazo de 12 meses para que a lei nº 135/2010 entrasse em vigor.
Vale ou não vale?
Nas eleições de outubro de 2010, ocorreu o primeiro teste para a Ficha Limpa. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) julgou a validade da aplicação da lei, em função de a lei ter sido aprovada poucos meses antes. A decisão (por seis votos a um) foi favorável ao impedimento da candidatura de parlamentares condenados.
Dois membros vencidos do TSE (Gilmar Mendes e Marco Aurélio de Melo) teceram várias críticas à aplicação imediata da Ficha Limpa, amplamente divulgadas pela imprensa. Por conta desta vácuo jurídico, diversos candidatos “barrados no baile” entraram com ações junto ao STF, para ter o direito de concorrer às eleições.
Os ministros do STF que estavam a favor da aplicação imediata da lei alegaram, entre outros motivos, que o que estava sendo avaliado não era a Ficha Limpa, mas as regras para inscrições dos candidatos aos cargos políticos.
Casos concretos, como o de Joaquim Roriz (DF), Jader Barbalho (PA) e João Capiberibe (AP), resultaram em empates no STF (cinco votos contrários e outros cinco a favor da aplicação da lei – consequentemente, contra as candidaturas).
O impasse permaneceu até a posse do ministro Luís Fux, que substituiu Eros Grau (um dos ministros favoráveis à cassação das candidaturas de políticos enquadrados na Ficha Limpa). Fux decidiu pela invalidade da lei, alterando o placar. Houve protestos em diversas partes do país contra os “políticos quase limpos”.
A decisão de 2012, que manteve a constitucionalidade do Ficha Limpa, não foi unânime. Sete ministros favoráveis basearam o voto no parágrafo nono do artigo 14 da Constituição Federal, que deixa para a legislação complementar o estabelecimento das condições de inelegibilidade, a fim de proteger “a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato”.
Os votos contrários foram baseados na presunção da inocência, prevista no inciso 57 do artigo quinto da Constituição (uma cláusula pétrea, que não pode ser alterada nem mesmo por projeto de emenda constitucional). A lei diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença” (em outras palavras, não há condenação enquanto houver possibilidade de recursos).
O STF, porém, concluiu pela constitucionalidade da Ficha Limpa. O ministro Ricardo Lewandowski afirmou que a presunção da inocência é válida para casos penais, mas não possui amplitude suficiente para atingir o texto da Ficha Limpa.
A farsa
Em maio de 2010, depois que o projeto de lei foi aprovado pela Câmara dos Deputados, o texto seguiu o seu caminho natural: o encaminhamento para discussão e votação no Senado, a “casa revisora das leis do país”. Realmente, o Senado agiu, ao menos neste caso, como um revisor.
O texto original definia a lei nos seguintes termos: “Os que tenham sido condenados…” e seguia descrevendo as inelegibilidades. O Senado decidiu corrigir a concordância verbal e trocou o termo “tenham sido” por “forem”.
Na época, alguns jornalistas perceberam a possibilidade de abertura de uma brecha na lei. Afinal, quando se fala de “os que forem condenados”, surge uma indicação para o futuro – portanto, a lei não seria válida para as cassações e renúncias já ocorridas.
A mesa diretora do Senado negou veementemente que a casa legislativa teria alterado o texto da lei. Por mais de uma vez, senadores vieram a público afirmar que a alteração ocorrera exclusivamente para a correção e uniformização da lei.
Vale lembrar o rito legislativo: se o Senado alterar um texto já aprovado, ele precisa voltar à Câmara dos Deputados, para ser novamente avaliado. No entanto, como alegadamente ocorreu apenas uma correção sintática, decidiu-se pela desnecessidade de uma nova apreciação.
Foi um “golpe linguístico”. Ao trocar o gerúndio composto (tenham sido: verbo ter + verbo principal) pelo futuro do subjuntivo (forem), trocou-se também a perspectiva de aplicação da Ficha Limpa: sai a perspectiva temporal (todos os que tenham sido condenados serão inelegíveis), entra o futuro (os que forem condenados). Qualquer aluno do ensino médio sabe disto (ou deveria).
Não se trata de uma firula linguística. A troca do tempo verbal realmente abre brechas para que “fichas sujas” contestem a impugnação de suas candidaturas nas próximas eleições. De acordo com o TSE, a Ficha Limpa é válida para todos os políticos enquadrados na Ficha Limpa: eles são inelegíveis por oito anos.
A extensão da lei para o passado, no entanto, depende da interpretação que o STF dará para casos individuais, de acordo com as ações que serão impetradas nas próximas eleições. A “prova de fogo” acontece em outubro de 2016.